Ai que saudade da Amélia!
Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo que você vê você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, que se há de fazer
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era mulher de verdade
Letra de Mário Lago, música de Ataulfo Alves, Gravada pela primeira vez por Ataulfo e suas
Pastoras, em 27 de novembro de 1941
“Exijo a possibilidade de viver plenamente
a contradição de minha época, que pode fazer
de um sarcasmo a condição da verdade.”
Roland Barthes
Seguindo a lógica da canção, poderíamos realizar aqui uma análise baseada nas questões de gênero. Contudo, realizarei uma análise baseada nas questões colocadas por Roland Barthes no livro Mitologias em que ele constrói um novo tipo de análise semiológica. A análise, como coloca Barthes, terá um tom artificial, ascético. Após essas duas considerações, continuemos.
Temos aqui o já construído mito de Amélia, a mulher de verdade. Desde 1941 essa música é tocada no Brasil, ora com tom irônico, ora reiterando valores machistas. Ao que parece, ela foi escrita com esse propósito. Em 1941 iniciava-se movimentos de libertação feminina que culminaram nos grandes movimentos dos anos 60.
A canção fala de um homem que já havia sido casado com uma mulher chamada Amélia, mas que por algum motivo (provavelmente falecimento, já que na época não havia divórcio, e Amélia era perfeita demais para ser deixada) vem a se casar com uma outra mulher. Dessa vez, ela faz “exigências”, não sabe o que é “consciência” (e provavelmente fala muito sobre isso), só “pensa em luxo e riqueza” e não enxerga que seu marido é um “pobre rapaz”. Amélia, contudo, passava fome ao lado dele, sem reclamar, ela achava “até bonito não ter o que comer”. Amélia era resignada, não possuía nenhuma vaidade, e por isso, para o narrador, era uma “mulher de verdade”. Como fazemos aqui uma análise semiológica, onde um signo é um sistema binário formado por significante e significado, é de se esperar que a “outra” é uma mulher falsa, mentirosa.
Amélia é um mito na sociedade brasileira. Até hoje, quando quer se falar de uma mulher forte, que cuida do lar, dos filhos, refere-se à ela como “uma Amélia”. Outra possível significação do termo “uma Amélia” (daí já mais posterior, após o movimento de libertação feminina) é “uma ingênua”, “uma boba”, uma mulher fácil de ser passada para trás.
Aqui, o sentido é a história do Marido de Amélia, que afirma que ela passava fome ao seu lado sem reclamar e que não possuía vaidades. Esse sentido apresenta a forma que é “Amélia que era mulher de verdade”. O fato de ser o ex-Marido de Amélia que conta essa história distancia-nos da “verdadeira” história dessa mulher. Teria Amélia sofrido em silêncio? Teria Amélia morrido, ido embora? O mito de Amélia é o de uma mulher que realmente não tem emoção nenhuma e isso é devido ao fato de sua história ser contada por um ex-marido (talvez arrependido?). Talvez o Marido de Amélia só a valorize agora, com a presença da segunda esposa. O único momento em que é dada voz ao mito Amélia é o verso “Dizia: Meu filho, que se há de fazer”, em que Amélia possui um tom de resignação, até maternal, provavelmente provindo de sofrimento, fome e tristeza, e não, como afirma o ex-marido, de sua mínima vaidade ou do fato de que ela achava bonito passar fome. Alguém pode afirmar que ou Amélia sofria em silêncio ou estava resignada.
Contudo, não é o caso analisarmos a possível vida do personagem Amélia, e sim a forma e sentido com que seu mito nos é apresentado e a significação que ele denota. Muitas vezes Amélia foi cantada apenas como um “samba bonito”, o que o torna uma canção literal, livre de interpretações e oculta a intenção do mito. Na pretensão de tomar o lugar do mitólogo, deve-se isolar a forma ou o sentido a fim de procurar a significação. Ela não acompanha o signo que é completamente arbitrário, a significação, para Roland Barthes, nunca é totalmente arbitrária, em parte ela é sempre motivada e contém uma parte da analogia.
O mito de Amélia, portanto, designa o mito da “mulher ideal” para um marido brasileiro e pobre. Uma mulher que não reclama, não sonha e não possui vaidade. O único propósito do mito Amélia é cuidar da casa e afagar seu marido com palavras dóceis quando ele se vê contrariado. Há na música o que Amélia não deve fazer explícito em outro mito: o da contra-Amélia. Amélia não pode exigir nada, não pode ter (e nem saber) o que é consciência e não deve pensar em luxos e riquezas. Contra-Amélia não é considerada pelo Marido um exemplo digno de mulher. Somente Amélia “é que era mulher”.
O Marido de “Ai que saudade da Amélia”, é um “pobre rapaz” mas ele não é nem proletário nem burguês. Contudo, o ideal de vida do casamento, da esposa em casa a espera do marido, é um ideal burguês. O marido, então, é o Homem Eterno, habitante do universo dos fatos burgueses. Porque, segundo Barthes, é quando penetra nas classes intermediárias que os ideais burgueses (tal qual o mito de Amélia) se tornam verdades diluídas no imaginário.
“Essa aliança vai se reforçando com o tempo e se transformando pouco a pouco em simbiose. Tomadas de consciência provisórias podem acontecer, mas a ideologia comum já não é posta em questão: uma mesma camada “natural” cobre todas as representações “nacionais”: o grande casamento burguês, fruto de um rito de classe (a apresentação e o consumo das riquezas) , não pode ter nenhuma relação com o estatuto econômico dos pequeno-burgueses , mas, por meio da imprensa, das atualidades e da Literatura, transformou-se, pouco a pouco, na norma, se não vivida, pelo menos sonhada do casal pequeno-burguês. A burguesia absorve ininterruptamente na sua ideologia toda uma humanidade que não possui um estatuto profundo e o que só pode vivê-lo no imaginário, isto é, no empobrecimento da consciência. Expandindo as suas representações graças a todo um catálogo de imagens coletivas para o uso Pequeno-burguês, a burguesia consagra a indiferenciação ilusória das classes sociais (...)” (Barthes, 1970)
Aí, então, encontro um terceiro mito na canção: a mulher pequeno-burguesa. Colocada nas devidas proporções do caso brasileiro (que difere muito do francês) A contra-Amélia quer ter um padrão de vida burguês e seu marido não pode oferecê-lo. A visão de mundo dela é exigente e, segundo o Marido – é bom lembrar que os mitos da canção são construídos segundo a visão dele - , ela deseja “luxo e riqueza”. Aí está o paradoxo da indiferenciação das classes sociais: Contra-Amélia quer ser burguesa mas não pode; Marido quer um casamento burguês mas não quer uma mulher burguesa. Ele quer a figura mítica da “mulher do proletário”, que nada quer, nada pede, nada exige.
Para concluir, Amélia é um caso de mito deslocado. Quando foi escrita, representava um ideal. Atualmente, representa outro. O mito continua tendo força, porém, outra força. O mito, antes reduzido ao ideal vigente, hoje está circunscrito a um contra-ideal: a mulher não deve ser Amélia se não quiser ser considerada ingênua. Tampouco, deve ser Contra-Amélia. O novo mito da “mulher ideal”, apresentado nas revistas como Cláudia, é o mito da mulher “independente sem deixar de ser mulher”. Mas esse não é um mito a ser discutido nesse trabalho.
Resumindo: o significante do mito “Amélia” é que ela"era uma mulher de verdade”. O significado, que Amélia (que não reclama e não tem vaidade) era o Ideal de mulher para o homem em 1941. Entrando no campo da significação; o “produtor de mitos” de Barthes vê (focaliza, para usar o termo do autor) Amélia como o símbolo da “mulher de verdade”. Para o “mitólogo” de Barthes, Amélia é o álibi do Marido para considerá-la “mulher de verdade”. Já para o “leitor do mito”, Amélia é a própria presença da “mulher de verdade”. Para o autor, a primeira focalização é cínica, a segunda desmistificadora e a terceira é dinâmica, ela faz com que o leitor viva o mito como uma história simultaneamente verdadeira e irreal.
Barthes afirma que o que faz com que o leitor consuma o mito inocentemente é o fato de não enxergá-lo como um sistema semiológico: um signo formado por significante e significado (no caso de Barthes, substituir signo por significação). Para o leitor, é um sistema indutivo: há apenas uma equivalência, é uma relação natural. Nas palavras de Barthes: “(...) O sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema fatual, quando é apenas um sistema semiológico.”
Referência Bibliográfica
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro, Difel, 2007.