segunda-feira, outubro 20, 2008

A mim, a você


Acorrentados

Paulo Mendes Campos


Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.


Texto extraído do livro "O Anjo Bêbado", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 105.

sábado, outubro 11, 2008

Léxico Particular – Esses Sujeitos Femininos


Essa ansiedade (s.f.) Não tem razão de ser mas é rígida e impiedosa. Retoma velhos hábitos e data de velhos tempos infantis.

Essa concomitância (s.f.) Verbete que une todas as palavras deste léxico. Também presente em alguns momentos da vida em relação a sentimentos alheios.

Essa descompostura (s.f.) Rara palavra, mas marcante. Está em momentos de preferível esquecimento. Ou não.

Essa displicência (s.f.) Faz parte do universo do aquilo-que-poderia-ter-sido. Está muito presente no que chamamos dia-a-dia. Muito comum em relação ao tempo, à arte e ao conhecimento. Requer certo sangue frio.

Essa inconstância (s.f.) Palavra que soa familiar; se alimenta de meus dizeres, de meus escritos, de meu ser. É como um olho que fecha e abre – a transformação. As minhas mãos não sabem o que fazer.

Essa indecisão (s.f.) Presente nos mais variados momentos, do escolher o sabor do chá ao futuro incerto e aos detalhes das palavras. Perpassa ainda os fatos mais relevantes de uma vida.

Essa melancolia (s.f.) A incidência deste termo é sazonal. (Para esclarecimentos, ver: Essa inconstância)

Essa solidão (s.f.) Uma das palavras mais pesadas do mundo das palavras. ‘Solidão’ pesa mais que ‘tempo’ que ‘mundo’ e que ‘verdade’. Só não mais que ‘perdão’.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Turista na minha província



A perspectiva da cidade muda completamente quando se é turista. Nessa condição, tudo tem seu ar mágico: as pombas, os mendigos, os velhos, os telhados, os varais, as calçadas, os ônibus, o trânsito, os táxis, as árvores, as bicicletas, os artistas de rua, as prostitutas, os cachorros e a chuva. Até o céu nublado tem seu charme quando se é forasteiro.

Claro, tudo é absolutamente novo. Nem tanto. Viajo todos os anos ao Recife, já vi e revi todas as suas belas paisagens. Mas sempre que volto, sinto que seus pequenos detalhes são infinitamente mais divertidos que os de minha cidade. Posso argumentar que Curitiba não é exatamente um lugar belo e divertido, o que se torna uma inverdade dolorida quando percebo que me faltam olhos curiosos de turistas para enxergá-la de verdade.

Certo dia, resolvi experimentar. Lembrei-me vagamente de minhas viagens: dos ambulantes do Recife aos taxistas paulistanos, da feira de Caruaru à 42nd Street em New York, da noite no cais recifense aos copos y tapas de Madrid e da serra gaúcha ao bucólico campo português. Ao respirar essas lembranças, tinha a nítida sensação de que fui observadora minuciosa desses lugares, mas que eles são apenas memória. Curitiba é real, é tangível. O mapa não está em punho, está intrincado no cérebro.

Com isso em mente, coloquei meus ‘óculos de turista’ e saí a caminhar pela ‘XV’ de câmara fotográfica em punho, como manda o figurino. Sem idéias preconcebidas, consegui achar bonito o vôo das pombas da Santos Andrade, os mendigos da Riachuelo, os bolivianos gaiteiros, as estátuas vivas e os poetas que amam a lua. Até a campanha política eu apreciei: peguei todos os santinhos. Eu vi tantas coisas bonitas, admiráveis, estupendas. Passei pelo Largo – pedi pra tirarem uma foto minha junto do bebedouro –, entrei na Catedral e fiz compras na Casa China. Depois, um pequeno ‘sightseeing’ pela Rui Barbosa, pela Tiradentes, através da Rua 24 Horas (achei até charmoso ela estar fechada). Então, entrei no tubo e peguei o biarticulado, achando tudo o máximo. Dei uma passadinha no Botânico e fui para casa.

No dia seguinte, fui revelar o filme: estava queimado. Do meu passeio turístico por Curitiba nada sobrou. Ao sair da loja, ali na confusão da Marechal Deodoro pensei: tudo tão banal, que vontade de viajar.


* Crônica produzida para Redação Jornalística III

quarta-feira, outubro 08, 2008

O Diazepam

Novo projeto de blog, O Diazepam, aliás, vamos parar com essa de projeto. O novo blog O Diazepam une as forças de sete audaciosos estudantes de jornalismo da UFPR, incluindo esta que vos fala. A idéia são postagens diárias, um autor por dia. Não há um tema definido, fala-se o que está no coração: pode ser uma crônica, um desabafo, um texto teórico, uma reclamação, uma reportagem etc etc etc. Eu me chamo sábado, Iasa Monique é domingo sem cara de domingo, Chico Marés é uma ensolarada segunda-feira (Garfield não tem vez). Mari Cioffi é uma doce terça-feira e Amanda Audi faz as quartas-feiras mais agradáveis. O caçula Fábio Pupo empresta sua voz grave às quintas-feiras e Sandoval Poletto seu texto afiado às sextas-feiras. Espera-se que continuemos por muitas semanas.

domingo, outubro 05, 2008

Léxico particular: Languidez



O céu laranja; olhos fechados; rara paz. Instantes até que o silêncio que tem nome volte a agitar, aquietar, agitar, aquietar. O silêncio do céu laranja eu nomeio languidez, achando impossível que a vida seja feita de algo além de poesia.