Dois modos de ver fotografia
Até o final de setembro estarão abertas ao público curitibano duas exposições fotográficas: ‘fotografia subjetiva’ A Contribuição Alemã 1948 – 1963 (Casa Andrade Muricy, de 31 de julho a 28 de setembro, entrada franca) e Fotógrafo Norte-Americanos (Espaço Caixa Cultural, de 27 de julho a 26 de setembro, entrada franca). A primeira é uma extensa mostra de imagens produzidas pelo que se consagrou chamar de ‘fotografia subjetiva’ (grafada em minúsculas mesmo, na tipologia Bauhaus) cujo maior mestre foi o alemão Otto Steinert. A segunda é uma coletânea de 33 imagens da fotografia norte-americana do início do século que incluiu obras de Lewis Hine, Paul Strand e diversos fotógrafos da equipe da Farm Security Administration (FSA – Administração da Segurança de Fazendas). Esses fotógrafos foram os precursores do que se costuma chamar de ‘fotografia documental’.
É interessante notar que as duas exposições têm conteúdos que se contrapõe na sua concepção teórica e prática, mas que mostram duas vertentes interessantes da fotografia do século XX.
‘fotografia subjetiva’
A mostra exposta na Casa Andrade Muricy é uma retrospectiva extensa do movimento ‘fotografia subjetiva’. São mais de 150 imagens de expoentes do movimento que teve suas raízes na ‘nova fotografia’ alemã dos anos 20 e na Bauhaus de Walter Gropius. Essas primeiras influências estão marcadas na exposição por nomes como Adolf Lazi, Herbet List, Chargesheimer, Marta Hoepffner e Heiz Hajek-Heinz - chamados de “incentivadores e parceiros do movimento emergente”. A maioria deles foi banida da Alemanha com o regime nazista que classificou suas fotografias como “degeneradas”. São imagens marcadas por simbolismo, experimentos de fotografia de objetos, composições elaboradas e geométricas. É notória a presença da destruição do pós-I guerra e das sombras que caíram sobre a Alemanha durante o período: o preto é intensamente contrastado.
Todas essas características estão presentes com muito mais intensidade na segunda parte da mostra que mostra o movimento vanguardista fotoform que ocorreu após a II Guerra Mundial, de 1949 a 1958. Com um projeto teórico bem estabelecido, o grupo de fotógrafos pretendia enfatizar a criação individual com os recursos da fotografia. Otto Steinert – mentor do movimento que organizou as duas exposições do grupo e criou o termo ‘fotografia subjetiva’ – considerava importante criar imagens que satisfizessem um olhar artisticamente receptivo. A ‘fotografia normal’, ou melhor, a ‘fotografia objetiva’ que visa à utilidade e à representação da realidade não lhe interessava.
Nas fotos do fotoform é comum o uso de recursos como oscilações luminosas, tempos maiores que captam o movimento, a presença do fotógrafo na imagem. As fotos são obscuras e tratam sempre de temas industriais, áridos. A solidão é também recorrente: as pessoas estão quase sempre solitárias. Numa análise simplista, podemos dizer que é visível a presença de traumas pós-guerra e a necessidade de transformar a visão da fotografia publicitária nazista, que exaltava valores como a família, a moral e a superioridade.
Também é importante notar os experimentos inspirados na pintura contemporânea abstrata e surrealista. Imagens em close-up de objetos, dupla exposições. Muitas fotos de metal, máquinas. Mas nada de colagens, como se fazia no anos 20. O objetivo dos fotógrafos do fotoform – dos quais destaco, além de Steinert, Ludwig Windstoßer, Peter Keetman, Toni Scheneiders e Wolfgang Reisewitz – era utilizar todos os recursos possíveis do equipamento fotográfico sem apelar para outras técnicas artísticas.
As fotos de Steinert são objetos ‘inúteis’ no sentido comum da palavra. São como as gravuras, as pinturas. São retratos conceituais (a bailarina sentada em uma cadeira moderna é maravilhosa), fotos de árvores em movimento, fábricas sombrias etc. Professor que era, Steinert ensinou muitos discípulos ao longo de sua vida, cujo trabalho pode ser visto na quarta parte da exposição, onde há imagens de diversos fotógrafos do mundo todo por ele influenciados. A quinta parte é um prólogo que fala de tendências contemporâneas inspiradas pela ‘fotografia subjetiva’, cujos expoentes são Robert Häusser e Stefan Moses.
A tradição documental
Já na Caixa Cultura, pode-se ver um outro tipo de fotografia. São imagens dos primórdios da fotografia documental no mundo. A exposição tem curadoria de João Kulcsár, que teve acesso a negativos do Governo Americano para fazer as cópias. Em prata gelatina, trazem visível na ampliação o desgaste dos anos passados
Começa-se pelos mestres Paul Strand e Alfred Stieglitz e Lewis Hine. Os três iniciaram na América do Norte a tradição documental, que visa mostrar a realidade – com preocupações estéticas – e criar um documento historio que demonstre como era determinada sociedade, vivência ou povo. Estão presentes na mostra ícones como O terminal da Estação de Cavalos de Stieglitz e Blind Woman de Strand. Além disso, algumas das imagens mais famosas que Hine fez na luta pelo fim do trabalho infantil (da qual foi ativo militante) como os meninos carvoeiros e a menina na fábrica de algodão. Uma foto que destoa bastante da proposta da exposição é um nu captado por Stieglitz à la Man Ray.
Logo em seguida (e com falha da curadoria, não citado no texto de apresentação da exposição) estão as fotografias de um grupo de fotógrafo que no início do século trabalhou para a Farm Security Administration retratando as agruras da fome pós-1929, quando a Bolsa de New York quebrou. Parte do programa do New Deal de Frank Delano Roosevelt, a FSA criou uma nova estética de fotografia documental. Seus expoentes Dorothea Lange, Walker Evans, Arthur Rothstein, Ben Shahn, Russel Lee, Marion Wollcott e Gordon Parks mostraram à ‘América’ as agruras do campo, com seus imigrantes pobres e famintos.
Destaque para Lange e Evans. Ela com sua Migrant Mother (Mãe Imigrante), que mereceu destaque especial do curador. Uma das fotografias mais famosas de todos os tempos, mostra uma mãe e três crianças: a face cansada demonstra o sofrimento do viver. O retrato é muito emocionante e foi peça chave na conscientização do governo americano para tomar uma atitude. Além da clássica foto, há mais quatro cliques da série e um pequeno relato da fotógrafa. Já em Walker Evans podemos ver as paisagens urbanas de oficinas, carros Ford antigos e vendedores de frutas. Na obra do autor, são mais raros os personagens, mas é sempre muito forte a presença humana nas paisagens.
Pequenas observações
Sem fazer comparações, pois isso seria um contra-senso, visto que são mostras de fotografias feitas em épocas diferentes, em países diferentes e em contextos sociais diferentes, traço uma observação.
As fotografias de Os fotógrafos Norte-Americanos vêm carregadas de um contexto social muito grande. Em sua maioria, são fotografias tiradas com um objetivo claro de mostrar problemas sociais na esperança de amenizá-los. A preocupação estética é grande, mas ela é voltada para a utilidade da imagem. Quanto mais forte e bela, mais chamará atenção.
Já em ‘fotografia subjetiva’ as imagens tem o propósito único de ser arte. Aliás, as imagens não tem propósito, entrando na discussão da ‘inutilidade’ da arte. São imagens estéticas, calculadas e belas. A ‘fotografia subjetiva’ não objetiva a realidade (isso é claro em seu nome) ela foge dela, e entra no universo único do fotógrafo-artista.
A discussão entre fotógrafos documentaristas e conceituais pode ser infinita. Conferir as duas mostras, porém, pode trazer alguns esclarecimentos e a vivência em meio à prata-gelatina, e o aprendizado de que todas as correntes têm seu imenso valor estético, histórico e, por que não, mágico.
obs - essa resenha/pesquisa eu fiz para o Comunicação, jornal laboratório da UFPR, em que sou editora de cultura